"Gabriel,
Faltam três meses para você nascer. A primeira coisa que eu vou fazer quando você chegar é ver o quanto você se parece comigo ou com o seu pai. Mas, mesmo que você tenha meus olhos grandes e negros, mesmo que tenha a mesma carinha redonda, eu tenho medo de todo o resto ser muito, muito diferente de mim.
Você vai nascer americano.
Você nunca vai saber o que é poder andar o ano inteiro de short, camiseta e sandália Ortopé. Não vai saber o que e ir à feira domingos de manhã, não vai escutar o homem gritando na praia Biscooooito Globo. Não vai me ouvir reclamando porque você me pediu pra eu te levar pela centésima vez às grutas do Parque Lage. Não vai chorar porque os girinos que capturou no Jardim Botânico não aceitaram o pão que você deixou e apareceram boiando na tapeware com água depois de três dias. Você nunca vai saber o que é ir todos os anos na Loja Bonita pra comprar a roupa do seu aniversário. Não vai poder fugir para a casa dos avós quando brigar comigo. Não vai escutar a música do Jornal Nacional e saber que é hora de dormir. Vai pedir cupcakes em vez de bolo de milho. Sesame Street em vez de Sitio do Pica-Pau Amarelo.
É por isso que numa noite qualquer do meu futuro eu vou acordar com olhos arregalados e peito apertado que nem rosbife em barbante, pensando que você me esquecerá logo, porque a sua realidade vai ser completamente diferente da minha.
Pra você, junho não vai ser mês de festa junina, 12 de outubro não vai ser Dia das Crianças. Quem chegar por último não vai ser a mulher do padre e escolhas não serão feitas por unidunitê. Não vai ter primos pra brincar, não vai ter primos pra brigar. A Floresta da Tijuca não vai ser o seu quintal, e sua língua nunca vai ficar roxa de comer sacolé de uva. Você não vai ver Pluft no teatro Tablado e não vai ter medo da Cuca. Não vai saber o que é ter uma jabuticabeira no quintal ou torcer pelo Botafogo.
Mas ao menos vai saber o que é um choro do Pixinguinha e quem foi Vinícius de Morais. Porque eu vou estar na sua cama todas as noites contando histórias deste lugar de onde eu vim, lendo Lygia Bojunga e Monteiro Lobato. E quando não forem histórias de livro serão histórias de mim. Na sua cabeça, o Brasil vai se tornar esta terra distante e exótica, onde ainda é possível encontrar nas matas saci pererê e mula-sem-cabeça. Onde todo mundo dança por uma semana todo o ano. Onde espíritos de pretos velhos podem tomar pessoas. Onde um poeta chamado Chico colocou em versos toda a história do pais, e uma praia em frente a uma imensa lagoa contém as mulheres mais bonitas do mundo.
Vai ser tanto meu empenho em te formar brasileiro que talvez eu consiga te fazer dividido como eu. Mas, olha, isso e bom. Existem várias janelas de se ver o mundo, e você terá pelo menos quatro – a brasileira, a americana, a portoriquenha e a cubana – consulte seu pai sobre as últimas duas, que de assuntos caribenhos entende ele.
Mas prometo não ser também completamente brasileira, pra me adaptar a este mundo que é todo seu e apenas metade meu. Prometo ser a melhor mãe americana que eu puder. Prometo aprender a fazer bolos em formato de castelos, balões e elefantes, só porque todas as mães dos seus amigos precisam ser parecidas com a Martha Stweart – e você precisa que eu seja parecida com a mae dos seus amigos. Prometo aprender a comer peru no Thanksgiving – desde que eu possa repetir a receita no Natal, porque Natal de verdade se faz com peru, calor e rabanadas. Prometo te vestir de Ninja para juntos batermos de porta em porta pedindo doces em 31 de outubro. Prometo um dia me esforçar e aprender a viver numa destas casas de subúrbio longe de tudo e para onde todos vão, pra que você tenha um jardim com balanço e casa na árvore. Prometo deixar você pedir no restaurante um cheesburguer duplo com batatas fritas com queijo e bacon, mas uma só vez por ano, e se o ano for bissexto. Prometo me esconder pra chorar quando você sair de casa aos 18 anos pra fazer faculdade, sabendo que poderá nunca mais voltar. Prometo não invadir o campo quando cinco trogloditas pularem em cima de você no jogo de futebol americano.
Não, isso eu não prometo.
Eu te prometo tudo (ou quase tudo), e só te peço uma coisa. Não se esqueça de onde você veio. Não se esqueça de que você é metade latino. Jamais tenha vergonha de falar espanhol ou português, mesmo quando você descobrir que existe uma hierarquia de culturas no mundo, e que o Brasil ou Porto Rico não encabeçam a lista. Perdoe sua mãe quando ela errar o passado de algum verbo irregular em inglês na frente dos seus amigos.
Agradeça em espanhol ao ajudante de garcon que limpar a mesa do restaurante em que você levar a sua namorada. Não finja que não entende português quando for a única pessoa do check in do vôo para o Rio com apenas uma mala, e estiver cercado por pessoas com bagagem suficiente para passar 40 anos no deserto e descobrir com Moisés a terra prometida. Não tenha vergonha do seu sobrenome Suarez Batalha, mesmo se você um dia tiver um emprego muito, muito chique, e só tenha Smiths, Alens, Caldwells e Williams como colegas. Você vai se chamar Gabriel pra levar a marca latina no nome e sobrenome. É isso o que os latinos dizem aqui, você sabia? Que todos eles nascem com uma marca. Você terá muito mais oportunidades do que a maioria dos latinos neste país, mas nunca deixará de ser um deles. Respeite todos os imigrantes – ilegais ou não. É sempre sofrido mudar de país, e a maioria deles veio de lugares tristes. E, de certa forma são mais do que você. Porque foram capazes de chegar onde chegaram com muito menos possibilidades.
É isso, Gabriel. Eu sei que você vai ser muito diferente de mim. Mas sei também que as palavras Eu te amo vão chegar no seu coração antes que I love you. E espero que a minha insistência faça você tão latino quanto eu. Mesmo quando você estiver quase se esquecendo de mim, jamais renegue o seu passado.
Se eu souber que isso aconteceu, só não vou baixar suas calças e bater na sua bunda cabeluda de homem feito porque meu olhar já fará o serviço.
Martha M. Batalha"
Um dos melhores textos que eu já li na vida..
ResponderExcluirClap. Clap. Clap.
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